DIVAGAÇÕES

quarta-feira, novembro 18, 2020

HUMOR NEGRO


Nunca o tinha visto. Não o conhecia, nem de nome.
Os utentes da messe eram poucos, pelo que o aparecimento de um estranho chamava logo a atenção dos habituais comensais e com muito maior razão do seu director, que era eu.
Pelo uniforme, vi ser 1º Ten. e Fuzileiro.
O seu à vontade indicava que naquelas terras não era caloiro.
Alguém me disse então ser o comandante de uma companhia de fuzileiros, sediada em Vila Nova da Armada, para lá do Cunene, na região do Cuando-Cubango, nas terras do fim do mundo, SE de Angola, em linha recta a mais de 1000 Km de Luanda.
Não era oriundo da EN, tendo entrado para os quadros da Marinha como oficial do Ser-viço Especial – Fuzileiro.
No período do café, tomado no bar após as refeições principais, saltava à vista que era o centro natural das conversas de ocasião entre os convivas da sua faixa etária, sobre tudo e sobre nada, acompanhadas e acaloradas pelo habitual digestivo da praxe.
Tinha sempre um oportuno comentário, um dito, uma anedota, que caiam como sopa no mel em cada situação e que dele faziam um verdadeiro contador de estórias.
Pouco a pouco fui contactando com ele, criando uma relação que, sendo na altura por razões de ofício de mera circunstância, com o tempo se transformou numa pequena amiza-de que perdurou pelos anos fora.
Um dito que era recorrente no seu discurso nesses convívios, e que atribuía a alguém seu conhecido, era “fáçamos um supônhamos”, continuando a conversa como se nada fosse com ele e como se aquela expressão assumisse uma origem verdadeiramente camiliana.
Já regressados ao Continente, encontrámo-nos algumas vezes em tertúlias de camara-das amigos. Talvez a última tenha ocorrido em Setúbal, onde residia, num dos almoços mensais do meu curso da EN, em que levou um camarada do meu curso de entrada, tam-bém fuzileiro e que tinha tido um AVC fortíssimo que lhe retirou a fala e a quase total mobili-dade.
Com o passar dos anos, a diabetes tomou conta dele e de tal forma grave que lhe teve de ser amputado um dedo do pé e em seguida esse mesmo pé.
Apesar disso, a sua boa disposição mantinha-se imperturbável.
Mais algum tempo passado, ao telefone, disse-me com o habitual ar de quem tinha acertado no euro milhões:
- Sabes, tenho uma excelente notícia para te dar: já não me podem cortar mais nenhum pé! Acabaram de me amputar o último!
Impressionante! Como uma negra notícia pode ser servida aos amigos, pela própria ví-tima, não em prato de ouro, mas, muito melhor do que isso, embrulhada no mais bonito dos invólucros, o humor.

2 comentários:

Luís Alves de Fraga disse...

Estória extraordinária que só quem junta o sentido de humor à humana capacidade de perceber o sofrimento é capaz de contar de modo a manter misturados os dois ingredientes, servindo-nos ambos numa travessa de boa prosa.

A.R.Costa disse...

Gostei sim senhor, porque é interessante e está muito bem contada.