DIVAGAÇÕES

domingo, maio 01, 2022

Uma falha de comunicação

-Óh meu sacana , porque não me avisaste antes?
Por vezes, começar pelo fim cria um certo suspense, como se o leitor estivesse a ler um livro po-licial, e facilita a tarefa do autor.
Vamos então a isso, trazendo para o caminho, em linguagem náutica, a imaginação do leitor.
Era uma vez…, assim começavam as histórias que nos contavam em miúdos, a que muitas vezes a idade nos faz voltar.
Tinham sido companheiros do mesmo curso e ligava-os uma boa amizade e sã camaradagem.
Um, o Amílcar, era solteiro e possuidor de um dom natural em sair-lhe espontânea e oportu-namente, com muita frequência, um dito certeiro, quase sempre sarcástico ou crítico sobre qual-quer assunto, nas cavaqueiras normais entre amigos. E fazia-o sempre com imensa graça. como se não fosse nada com ele e sem desmanchar o ar sério com que o fazia.
Vivia num apartamento alugado ali para os lados do miradouro de Santa Catarina, em Lisboa, numa rua que desce em direcção a Oeste.
O apartamento era pequeno e constituído por três peças, uma casa de banho e uma cozinha muito pequenas e uma sala, multiusos, que ocupava quase toda a superfície do fogo. Nesta divi-são, rasgavam-se viradas para o Tejo umas enormes janelas que davam à habitação um ar român-tico na opinião das amizades femininas do inquilino.
O outro, o Baltazar, era recém-casado e vivia para os lados de Benfica.
Um certo dia, para apresentar o seu agradável apartamento ou com outra justificação qual-quer, Amílcar, que era também um excelente cozinheiro, convidou dois ou três casais amigos, en-tre os quais os Baltazar, para uma jantarada em sua casa. Baltazar, dada a confiança entre ambos, por sua vez propôs-lhe e extensão do convite a outro casal seu amigo, um marroquino, Mimon Zenou, casado com uma dinamarquesa, funcionário da IBM, mandado vir por esta de França, para colaborar no lançamento da informática na instituição onde Baltazar estava colocado nos primór-dios daquela actividade em Portugal. Amílcar, logo aceitou.
Também estava presente uma rapariga amiga de Amílcar, a Zulmira, quem diria que viria a ser futura cunhada de um amigo de ambos.
Foi um jantar agradabilíssimo. Após longa cavaqueira, sem agenda mas muito animada, arre-dados que foram os poucos móveis existentes, realizou-se um pequeno jogo de futebol, muito mais tarde apelidado de Futsal, mais ou menos de todos contra todos, para ajudar à digestão do lauto jantar.
Já era alta madrugada quando tocou a “destroçar” e cada casal se foi retirando.
Durante a conversa, Baltazar tinha ficado a saber que Zulmira morava na zona do Campo Pe-queno e como tal, para mais sabendo que o dono da casa nem carta de condução tinha, cavalhei-rescamente se ofereceu para lhe dar boleia até lá, reforçando o convite com o argumento de que apenas teria de fazer um pequeníssimo desvio no seu regresso a casa.
- Não, não vale a pena incomodar-se, apanho um táxi - dizia a rapariga.
- Nem pensar, insisto - retorquia-lhe Baltazar.
Após várias tentativas de parte a parte para fazer vingar a sua vontade, talvez por cansaço ou por boa educação de parte de Zulmira, Baltazar acabou por ganhar e assim levou a rapariga a ca-sa.
No dia seguinte, trocando ideias sobre o jantar de véspera, Amílcar dizia a Baltazar:
- Nem sabes o que arranjaste! A Zulmira teve de apanhar um táxi para voltar!
Caindo em si e lamentando a sua pouca perspicácia perante à resistência de Zulmira em aceitar a boleia, faz sentido e percebe-se agora a primeira frase desta memória de um jantar não mais esquecido, com que Baltazar mimoseou Amílcar.

1 comentário:

Luís Alves de Fraga disse...

Uma deliciosa estória, que me fez sorrir no final - um sorriso de boa disposição -, de um tempo onde imperavam, ainda, algumas virtudes que hoje em dia vão estando esquecidas: os jantares para se conversar, o cavalheirismo, os saudáveis convívios, pós-repasto, sem passar pelos telemóveis e, acima de tudo, a discrição nas relações.
Meu Caro José Nunes da Cruz, tens tanta memória guardada em ti, que posta em prosa nos dá um imenso prazer em ler, e é uma pena que não te disponhas a contá-las.
Deita mão à obra, porque arte não te falta; nem arte, nem humor fino servido de uma deliciosa ironia.
Um grande abraço.